quarta-feira, 10 de março de 2010

Ser Mulher (na merda do mundo hodierno)

A difícil arte de ser mulher
Frei Betto
Hours concours em Cannes, um dos filmes de maior sucesso no badalado festival francês foi  “Ágora”, direção de Alejandro Amenabar. A estrela é a inglesa Rachel Weiz, premiada com o Oscar 2006 de melhor atriz coadjuvante em “O jardineiro fiel”, dirigido por Fernando Meirelles.
Em “Ágora” ela interpreta Hipácia, única mulher da Antiguidade a se destacar como cientista. Astrônoma, física, matemática e filósofa, Hipácia nasceu em 370, em Alexandria. Foi a última grande cientista de renome a trabalhar na lendária biblioteca daquela cidade egípcia. Na Academia de Atenas ocupou, aos 30 anos, a cadeira de Plotino. Escreveu tratados sobre Euclides e Ptolomeu, desenvolveu um mapa de corpos celestes e teria inventado novos modelos de astrolábio, planisfério e hidrômetro.
Neoplatônica, Hipácia defendia a liberdade de religião e de pensamento. Acreditava que o Universo era regido por leis matemáticas. Tais ideias suscitaram a ira de fundamentalistas cristãos que, em plena decadência do Império Romano, lutavam por conquistar a hegemonia cultural.
Em 415, instigados por Cirilo, bispo de Alexandria, fanáticos arrastaram Hipácia a uma igreja, esfolaram-na com cacos de cerâmica e conchas e, após assassiná-la, atiraram o corpo a uma fogueira. Sua morte selou, por mil anos, a estagnação da matemática ocidental. Cirilo foi canonizado por Roma.
O filme de Amenabar é pertinente nesse momento em que o fanatismo religioso se revigora mundo afora. Contudo, toca também outro tema mais profundo: a opressão contra a mulher. Hoje, ela se manifesta por recursos tão sofisticados que chegam a convencer as próprias mulheres de que esse é o caminho certo da libertação feminina.
Na sociedade capitalista, onde o lucro impera  acima de todos os valores, o padrão machista de cultura associa erotismo e mercadoria. A isca é a imagem estereotipada da mulher. Sua autoestima é deslocada para o sentir-se desejada; seu corpo é violentamente modelado segundo padrões consumistas de beleza; seus atributos físicos se tornam onipresentes.
Onde há oferta de produtos – TV, internet, outdoor, revista, jornal, folheto, cartaz afixado em  veículos, e o merchandising embutido em telenovelas – o que se vê é uma  profusão de seios, nádegas, lábios, coxas etc. É o açougue virtual. Hipácia é castrada em sua inteligência, em seus talentos e valores subjetivos, e agora dilacerada pelas conveniências do mercado.  É sutilmente esfolada na ânsia de atingir a perfeição.
Segundo a ironia da Ciranda da bailarina, de Edu Lobo e Chico Buarque, “Procurando bem / todo mundo tem pereba / marca de bexiga ou vacina / e tem piriri, tem lombriga, tem ameba / só a bailarina que não tem”.   Se tiver, será execrada pelos padrões machistas por ser gorda, velha, sem atributos físicos que a tornem desejável.
Se abre a boca, deve falar de emoções, nunca de valores; de fantasias, e  não de realidade; da vida privada e não da pública (política). E aceitar ser lisonjeiramente reduzida à irracionalidade analógica: “gata”, “vaca”, “avião”, “melancia” etc.
Para evitar ser execrada, agora Hipácia deve controlar o peso à custa de enormes sacrifícios (quem dera destinasse aos famintos o que deixa de  ingerir...), mudar o vestuário o mais frequentemente possível, submeter-se à cirurgia plástica por mera questão de vaidade (e  pensar que este ramo da medicina foi criado para corrigir anomalias físicas e não para dedicar-se a caprichos estéticos).
Toda mulher sabe: melhor que ser atraente, é ser amada. Mas o amor é um valor anticapitalista. Supõe solidariedade e não competitividade; partilha e não acúmulo; doação e não possessão. E o machismo impregnado nessa cultura voltada ao consumismo teme a alteridade feminina. Melhor fomentar a mulher-objeto (de consumo).
Na guerra dos sexos, historicamente é o homem quem dita o lugar da mulher. Ele tem a posse dos bens (patrimônio); a ela cabe o cuidado da casa (matrimônio). E, é claro, ela é incluída entre os bens... Vide o tradicional costume de, no casamento, incluir o sobrenome do marido ao nome da mulher.
No Brasil colonial, dizia-se que à mulher do senhor de escravos era permitido sair de casa apenas três vezes: para ser batizada, casada e enterrada... Ainda hoje, a Hipácia interessada em matemática e filosofia é, no mínimo, uma ameaça aos homens que não querem compartir, e sim dominar. Eles são repletos de vontades e parcos de inteligência, ainda que cultos.
Se o atrativo é o que se vê, por que o espanto ao saber que a média atual de durabilidade conjugal no Brasil é de sete anos? Como exigir que homens se interessem por mulheres que carecem de atributos físicos ou quando estes são vencidos pela idade?
Pena que ainda não inventaram botox para a alma. E nem cirurgia plástica para a subjetividade!!!!

7 comentários:

  1. Opressão, Vontade de Potência.

    Tem um dilema ae: Até que ponto a mulher pode abandonar o culto a aparência e ainda continuar sendo mulher?

    Imaginar uma sociedade aonde a mulher tenha lugar sem precisar apelar pra aparência... eu não tenho tanta fé na condição humana assim não viu.

    Creio que até caiba uma reflexão darwinista ae viu diana..

    ResponderExcluir
  2. Uma pena mesmo que que muitose é discutido daquilo que se dis respeito da estética e da beleza; mas nada se é discutido a respeito da moral, da ética e da alma. Gostei muito do texto. Acho que você deveria escrever um texto sobre a mesma temática, mas tendo o homem como plano de fundo, pois os homens também tem os mesmo problemas como as mulheres: estética (tem de ser sarado), sentimentos (homem não chora), profissão (Cabelereiro é coisa de Viado!); e etc.... Hpá muito preonceito e conceito errados a respeito da sociedade tanto para homens quanto para mulheres. Somos vítmas de ideologias que se contradizem e que nãoa crescentam nada a alma humana.

    ResponderExcluir
  3. Com esse hodierno, você devia estar era no Direito!

    ResponderExcluir
  4. Pena que "hodierno" nem dá o quisto trocadilho com "inferno". :(

    ResponderExcluir
  5. não me venham com essa não.. quando os homens ficam velhos, em geral continuam usando o mesmo tipo de roupa de quando são jovens. E as roupas que usamos podem ser usadas por mulheres sem as mesmas parecerem ridiculas!...

    ResponderExcluir
  6. coloquei pra baixar o filme viu.. assisti o efetivo vencedor do cannes um dia desses "a fita branca" excelente filme!

    ResponderExcluir

Comentaí, meu.