sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Ter ou não ter: Filhos

Acabei de ler esta semana o Por Que Te Amo Não Nascerás - Nascituri te Salutant, de Júlio Cabrera e Thiago Lenharo de Santis.
Nas palavras deles mesmos, no site do livro (chique né? É um livro que tenta ser pop. Não me espantaria se visse propaganda em algum outdoor):



Porque te amo, NÃO nascerás! ou Nascituri te Salutant é um livro que coloca em discussão a delicada questão da procriação, fazendo um esforço para levar em conta,  em primeiro lugar, o ponto de vista daquele que ainda nem nasceu.
Os autores consideram que quem diz estar disposto a amar seus futuros filhos acima de tudo, não deverá fazê-los nascer! Trata-se de uma idéia polêmica e intrigante, apresentada em um texto contundente, entrecortado por fotos, ilustrações, notas, opções de leitura, esquemas e tabelas, entre outros.


Ah, vamos lá, nem é tão "interessantíssimo" assim. Mas propaganda é exagerada por natureza.


Desde o título, o livro se mostra diferentoso. Gosto de coisas ácidas, sugerir que as pessoas não tenham seus amados filhos e dar argumentos lógicos para isto é absolutamente chocante. Há por aí muito debate sobre não ter filhos, mas realmente (acho) que o ponto de vista do nascituro ainda não tinha sido defendido, e como já disse, apóio que todos tenham voz, inclusive os que ainda não nasceram. Há três coisas que AMEI no livro:


First: Nos arregala os olhos sobre como temos tratado nossos futuros filhos como mercadoria. Dizer "quero ter um filho para ensinar ele a jogar futebol" equivale a "quero ter um cãozinho para ensinar ele a dar a pata". Embora eu considero que poderiam ter explorado um pouco mais a noção de que transferimos para eles nossos sonhos e frustrações "meu filho vai fazer tudo que eu não pude" mas vá lá, o livro não é meu.


Segundo, mostra que o aborto é um duplo crime. Dá-se a vida a alguém, em seguida tira-se. Mas isto é só porque eu sou contra o aborto em todo caso e me empolgo com qualquer argumento que me ajude nisso. A defesa da adoção entra também aí.


E o livro é muito gostoso de ler, adorei o bom humor dos autores, a poética fria da interação entre as fotos e o tema, achei surpreendente o final, não poderia ter outro melhor. Apesar de escrito por filósofos, o fato do Santis ter estudado física tornou a lógica do livro bastante demonstrativa e sintética, não são discussões redundantes e intermináveis (é por elas que tanta gente perde a paciência com filosofia).


O que restou de pedantismo filosófico foi a necessidade de posteridade dos autores ao ambientar o romance (é um romance) num futuro distante onde ambos estão suicidados, e seus descendentes (eles os têm!) encontram seus escritos, decidindo publicá-los. Não soa estranho que afirmem o imediatismo da vida e busquem no próprio livro a eternidade? Afirmar-se contra a procriação e dizer isto por meio de sua descendência não é uma confissão de incapacidade? Adoro estes paradoxos de entrelinhas!


Pena que - mesmo se dizendo pop - o livro já comece exigindo prévias de filosofia nada básicas: imperativos categóricos de Kant e pessimismo schopenhaueriano são dados por velhos conhecidos dos leitores. Se realmente seu seleto público tem "nível", não é necessário (como faz frequentemente) provar em quinze páginas por A + B que A + B é igual a A + B. Delongas!


Recomendo especialmente aos meus amigos espíritas. Este é sim um maldito livro de lógica materialista, mas cuja conclusão (não os deixe nascer) se deve a premissa de que não existe vida além deste mundo. Concorde com tudo o que diz o livro, supondo apenas que há vida após a morte e reencarnação e tudo que ali se lê é o perfeito formão de futuros pais.


Nada mais cristão do que provar que a vida não é boa. Não é mesmo! Não existe felicidade, só alegrias momentâneas e cruéis (justamente por momentâneas). Dito a Pilatos: Meu reino não é deste mundo...




Antes dele eu não queria ter filhos. Depois de ler eu quero ter filhos sim, e justamente por concordar com tudo que diz (ah, eu sou estranha, vocês já sabiam). Pare de pensar em seus filhos como suas propriedades. Pare de decidir seus futuros por eles. Pare de impor a eles a obrigação de realizarem seus sonhos frustrados. Não os deixem acreditar que têm pais infalíveis: na adolescência descobrirão a mentira e se revoltarão contra vocês. Não tenha filhos porque você os quer: só os tenha se eles assim o quiserem. Complicado? Leia o livro.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Niilismo político

Ok, ok, era eu sim no protesto de 11/11 na UnB. Não adiantou muito o lenço na cabeça, amigos que são amigos se reconhecem até sem roupa.

Vou abstrair os comentários engraçadinhos e pinçar um que vale à pena replicar: Quem leu no site do Jornal do Brasil meu manifesto depois da ocupação da reitoria em abril de 2008 (para que saísse o reitor. Lembra? A lixeira de R$1mil...) não pôde compreender este súbito retorno ao ativismo. Explico-me. Aliás, o texto da época já explica metade:

Repúdio à insensatez de meus colegas

Zélia Diana Barbosa
Brasília (DF)

Sou aluna de Ciências Econômicas na UnB e participei ontem da Assembléia Geral dos Estudantes no Pátio da Reitoria, e peço espaço para um manifesto.

Morar neste País de corrupção corrente tem seu mais trágico efeito sobre as instituições de Direito. As denúncias contra o reitor da UnB são, ao mesmo tempo, revoltantes e comuns – talvez seja "o escândalo da vez", apenas. Julgar o que é legítimo torna-se confuso nesse ambiente de impunidade.

A Assembléia Geral dos Estudantes, ontem, parecia um exemplo de participação pacífica e ativa na construção da gestão democrática na universidade. A mobilização de 1.300 alunos aplaudindo máximas de ética e transparência encheu-me de espírito patriótico e comecei a acreditar estar num ambiente de debate político apartidário e diplomático, apesar das variações de ideologia que vão da utopia à anarquia.

Votamos o posicionamento dos estudantes questões importantes, uma delas – a ocupação de toda a reitoria – foi adiada devido à dificuldade de contagem dos votos, no que todos concordaram. Também concordaram contra a violência e a depredação do patrimônio público. Nessa hora comecei a pensar que teria orgulho de voltar ao trabalho com a fitinha verde no pulso – credencial para votação. Símbolo que deixei vergonhosamente no gramado da reitoria quando me afastei, assim que uma massa de baderneiros (os mesmos que votaram pela ocupação pacífica) promoveu a invasão violenta da rampa que dá acesso à sala do reitor, passando sobre os seguranças, esses trabalhadores que cumprem – esses sim – pacificamente sua função.

Esteja expresso à sociedade, aos meus professores especialmente, o lamento meu e de centenas de colegas que vi se afastando de cabeça baixa assim que ouvimos o "sobe, sobe". Que fique claro nossa indignação e repúdio a esses atos de insensatez.

Entristece que muitos colegas se abstenham de participar das votações que representam nossa voz, mas muito pior é pensar que estes outros que participam – não todos, estejam certos – descambam para a animalidade.

"Como assim, Zélia? Num momento você abandona a causa, no outro está lá você levantando cartaz?"

Meu sentimento desde a ocupação não mudou. Não apoio a atitude da tal Geyse (o que tem na cabeça alguém que usa o corpo para chamar a atenção?), não acho que seja papel dos estudantes da UnB se meterem num assunto tão distante e mais que saturado, concordo que existem coisas muito mais relevantes para discutir na universidade. O que eu apóio é que se discuta. Só tinha de aproveitável no bendito protesto o protesto mesmo, nem tanto as causas defendidas. Depois daquilo vi muitos colegas criticando "...por que não vão pedir mais livros para a biblioteca?" o que abre espaço para alguém responda "Isso, vamos então!". Um movimento social, por mais ridícula que seja sua motivação, serve para mostrar que qualquer um pode pegar um megafone e sair reivindicando o que bem entender, e que a mesma imprensa fútil que fez tempestade no caso na Uniban também vai dar visibilidade ao pedido. Afinal, o reitor se pronunciou, como pediam. Funciona!

Eu não puxo causa alguma, deixei meu marxismo no grêmio estudantil do ensino médio, mas dá-me a camisa e vesti-la-ei. Defendo que quem tem o que dizer o diga, o grite, o publique, e se precisar de volume e aplauso para ter espaço, lá me verão.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Vaidade vicia!

Os cabelos são a moldura do rosto, a roupa do rosto.  Não existe menina feia com cabelo bonito: basta um supercabelo e qualquer supercanhão se sente superoutra. São a expressão mais absoluta da vaidade feminina. Por isso cortei os meus.

Já dizia o tio Karl: não basta ser bom, é preciso ser o melhor: só o lucro máximo interessa, qualquer ganho  abaixo disto implica ser vencido (engolido, atropelado, desintegrado, como queiram – o alemão é tão versátil!) pelo concorrente mais forte. E disse mais: as relações de produção modelam (embasam, condicionam, infraestruturam, blaergh) outras relações sociais. A + B = nossas relações interpessoais refletem a concorrência capitalista. Mas devia?

Graças e louvores se dêem à ambição e a vontade de crescer que nos move, nos faz competitivos, nos põe em combate, nos faz evoluir. Buscar crescer é essencial, querer ser o melhor é natural, conseguir é um milagre. Os níveis de comparação se globalizaram e os campos de batalha são infinitos. O homem mais rico do mundo não conseguiu ser o mais bonito do mundo (talvez do metro quadrado), a mulher mais famosa não é a mais inteligente, o mais popular não consegue unanimidade. E cada qual sem se contentar em ser melhor, ser o melhor é o que vale. Estamos nos matando por um artigo.

Fechando o zoom e tornando à vaidade feminina, como poderemos, mulheres normais, ocupadas, trabalhadoras, estudantes, namoradas, seres humanos em autoconstrução, comparar nossas carreiras à da Taís Araújo (Chica da Silva aos 17), nossos saldos bancários aos da Madonna, nossas letrinhas às de Fernanda Young, nossos maridos ao da Angelina Jolie, nossas cútis à da Halle Berry, nossas nádegas às de Beyoncé, nossos cabelos aos da Gisele Bündchen?

Mas - me corrijam mulheres - com tudo se contenta, exceto cabelos. É que a carreira é a construção de toda uma vida, saldo bancário também (e dinheiro afinal não é tudo), inteligência não se compra, Brad Pitt só tem um, manter pele e bumbum é trabalhoso e caro. Os cabelos são o que menos tempo/dinheiro nos toma, então converge pras madeixas nossos anseios de vaidade. O problema é que jogamos aí todas as expectativas de sucesso (para compensar o salário, o marido, etc) e exigimos de nossa imagem muito mais do que é possível, então o limite dessa busca - que já era distante por causa dos comparativos globalizados - tende ao infinito. Mas nosso tempo é limitado. Não encaixa!

Se o cabelo está normal, começa a se sentir medíocre. Se o cabelo fica melhor, você se satisfaz temporariamente, mas os elogios (a droga do reconhecimento) dão uma espécie de prazer narcisista viciante: o dia em que não vierem, estoura a crise de abstinência e baixa autoestima. Quando não dá mais para melhorar os cabelos, partimos para as plásticas.

O submundo da vaidade é bastante mais perigoso que o das drogas químicas, porque é mais sutil e conta com o aplauso geral. É admirável que alguém não dependa mais de crack. É estranho que alguém não goste de se sentir bonito, atraente, desejável. Aceitação social é uma droga como qualquer outra, se manifesta pela vaidade e se reproduz no inchaço do ego.

Estou em busca do nirvana, então começo a decepar minhas vaidades das mais vis para as mais aceitáveis. Não é uma escolha aleatória, é mais fácil assim. Confesso que não sou um exemplo de disciplina, então tratamentos de choque funcionam comigo. Nada foi tão eficiente para recuperar a autoestima quanto me sentir pelada. Pular na água e começar a afogar-se para sentir que de fato sabe nadar, entende? Jogar tanto cabelo (e que tanto trabalho me deu) na lixeira do banheiro foi libertador.

Meus cabelos curtíssimos não podem mais esconder espinhas na testa, nem esconder meu rosto, nem esconder minha expressão, nem me esconder. Não tenho mais a infalível arma de me-guste de que minhas colegas da faculdade tanto se servem. Agora é para mim muito mais difícil conseguir boa primeira impressão automática, então o custo-benefício me leva a desistir disso. Eu desisti disso, e é ótimo! Eu não preciso de cabelo para me sentir bonita, pois não preciso me sentir bonita para me sentir aceita, porque não preciso me sentir aceita sentir que minha imagem é aceitável para estar bem. Imagem não é nada, interior é tudo. Nenhum jeito melhor para viver isto do que anular a minha imagem.

Aprendi a admirar mulheres que deixam os cabelos independentes. Existe bem maior chance de elas terem algo além deles na cabeça.

Simbólico, dramático e exagerado. Me identifiquei, só isso.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Eu odeio Brasília.

Clarice Lispector

Brasília é construída na linha do horizonte. – Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo. Nós somos todos deformados pela adaptação à liberdade de Deus. Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido criados em primeiro lugar, e depois o mundo deformado às nossas necessidades. Brasília ainda não tem o homem de Brasília. – Se eu dissesse que Brasília é bonita, veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas de digo que Brasília é a imagem de minha insônia, vêem nisso uma acusação; mas a minha insônia não é bonita nem feia – minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério. – Quando morri,um dia abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no mundo. Havia um táxi parado. Sem chofer. – Lucio Costa e Oscar Niemeyer, dois homens solitários. – Olho Brasília como olho Roma: Brasília começou com uma simplificação final de ruínas. A hera ainda não cresceu. – Além do vento há uma outra coisa que sopra. Só se reconhece na crispação sobrenatural do lago. – Em qualquer lugar onde se está de pé, criança pode cair, e para fora do mundo. Brasília fica à beira. – Se eu morasse aqui, deixaria meus cabelos crescerem até o chão. – Brasília é de um passado esplendoroso que já não existe mais. Há milênios desapareceu esse tipo de civilização. No século IV a.C. era habitada por homens e mulheres louros e altíssimos, que não eram americanos nem suecos, e que faiscavam ao sol. Eram todos cegos. É por isso que em Brasília não há onde esbarrar. Os brasiliários vestiam-se de ouro branco. A raça se extinguiu porque nasciam poucos filhos. Quanto mais belos os brasiliários, mais cegos e mais puros e mais faiscantes, e menos filhos. Não havia em nome de que morrer. Milênios depois foi descoberta por um bando de foragidos que em nenhum outro lugar seriam recebidos; eles nada tinham a perder. Ali acenderam fogo, armaram tendas, pouco a pouco escavando as areias que soterravam a cidade. Esses eram homens e mulheres menores e morenos, de olhos esquivos e inquietos, e que, por serem fugitivos e desesperados, tinham em nome de que viver e morrer. Eles habitaram as casas em ruínas, multiplicaram-se, constituindo uma raça humana muito contemplativa. – Esperei pela noite, noite veio, percebi com horror que era inútil: onde eu estivesse, eu seria vista. O que me apavora é: é vista por quem? – Foi construída sem lugar para ratos. Toda uma parte nossa, a pior, exatamente a que tem horror de ratos, essa parte não tem lugar em Brasília. Eles quiseram negar que a gente não presta. Construções com espaço calculado para as nuvens. O inferno me entende melhor. Mas os ratos, todos muito grandes, estão invadindo. Essa é uma manchete nos jornais. – Aqui eu tenho medo. – Este grande silêncio visual que eu amo. Também a minha insônia teria criado esta paz do nunca. Também eu, como eles dois que são monges, meditaria nesse deserto. Onde não há lugar para as tentações. Mas vejo ao longe urubus sobrevoando. O que estará morrendo meu Deus? – Não chorei nenhuma vez em Brasília. Não tinha lugar. – É uma praia sem mar. – Mamãe, está bonito ver você de pé com esse capote branco voando (É que morri, meu filho). – Uma prisão ao ar livre. De qualquer modo não haveria pra onde fugir. Pois quem foge iria provavelmente para Brasília. Prenderam-me na liberdade. Mas liberdade é só que se conquista. Quando me dão, estão me mandando ser livre. – Todo um lado de frieza humana que eu tenho, encontro em mim aqui em Brasília, e floresce gélido, potente, força gelada da Natureza. Aqui é o lugar onde os meus crimes (não os piores, mas os que não entenderei em mim), onde os meus crimes não seriam de amor. Vou embora para os meus outros crimes, os que Deus e eu compreendemos. Mas sei que voltarei. Sou atraída aqui pelo que me assusta em mim. – Nunca vi nada igual no mundo. Mas reconheço esta cidade no mais fundo de meu sonho. O mais fundo de meu sonho é uma lucidez. – Pois como eu ia dizendo, Flash Gordon... – Se tirasse meu retrato em pé em Brasília, quando revelassem a fotografia só sairia a paisagem. – Cadê as girafas de Brasília? – Certa crispação minha, certos silêncios, fazem meu filho dizer: puxa vida, os adultos são de morte. – É urgente. Se não for povoada, ou melhor, superpovoada, uma outra coisa vai habitá-la. E se acontecer, será tarde demais: não haverá lugar para pessoas. Elas se sentirão tacitamente expulsas. – A alma aqui não faz sombra no chão. – Nos primeiros dois dias fiquei sem fome. Tudo me parecia que ia ser comida de avião. – De noite estendi meu rosto para o silêncio. Sei que há uma hora incógnita em que o maná desce e umedece as terras de Brasília. – Por mais perto que se esteja, tudo aqui é visto de longe. Não encontrei um modo de tocar. Mas pelo menos essa vantagem a meu favor: antes de chegar aqui, eu já sabia como tocar de longe. Nunca me desesperei demais: de longe, eu tocava. Tive muito, e nem do que eu toquei, sabe. Mulher rica é assim. É Brasília pura. – A cidade de Brasília fica fora da cidade. – "Boys, boys, come here, will you, look who is coming on the street all dressed up in modernistic style. It ain't nobody but…" (Aunt Hagar's Blues, Ted Lewis aind His Band, com Jimmy Dorsey na clarineta) – Essa beleza assustadora, esta cidade traçada no ar. – Por enquanto não pode nascer samba em Brasília. -- Brasília não me deixa ficar cansada. Persegue um pouco. Bem-disposta, bem-disposta, bem-disposta, sinto-me bem. E afinal sempre cultivei meu cansaço, como a minha mais rica passividade. – Tudo isso é hoje apenas. Só Deus sabe o que acontecerá com Brasília. É que o acaso aqui é abrupto. – Brasília é mal-assombrada. É o perfil imóvel de uma coisa. – De minha insônia olho pela janela do hotel às três horas da madrugada. Brasília é paisagem da insônia. Nunca adormece. – Aqui o ser orgânico não se deteriora. Petrifica-se. – Eu queria ver espalhadas por Brasília 500 mil águias do mais negro ônix. – Brasília é assexuada. – O primeiro instante de ver é como certo instante da embriaguez: os pés não tocam na terra. – Como a gente respira fundo em Brasília. Quem respira, começa a querer. E querer, é que não pode. Não tem. Será que vai ter? É que não estou vendo onde. – Não me espantaria cruzar com árabes nas ruas. Árabes antigos e mortos. – Aqui morre minha paixão. E ganho uma lucidez que me deixa grandiosa à toa. Sou fabulosa e inútil, sou de puro ouro. E quase mediúnica. – Se há algum crime que a humanidade ainda não cometeu, esse crime novo será aqui inaugurado. E tão pouco secreto, tão bem adequado ao planalto, que ninguém jamais saberá. – Aqui é o lugar onde o espaço mais se parece com o tempo. – Tenho certeza de que aqui é o meu lugar certo. Mas é que a terra me viciou até o osso. – O ar religioso que senti desde o primeiro instante, e que neguei. Esta cidade foi conseguida pela prece. Dois homens beatificados pela solidão me criaram aqui de pé, inquieta, sozinha, a esse vento. Fazem tanta falta cavalos brancos soltos em Brasília. De noite eles seriam verdes ao luar. – Eu sei o que os dois quiseram: a lentidão e o silêncio, que também é a idéia que faço da eternidade. Os dois criaram o retrato de uma cidade eterna. – Há alguma coisa aqui que me dá medo. Quando eu descobrir o que me assusta, saberei também o que amo aqui. O medo sempre me guiou para o que eu quero; e, porque eu quero, temo. Muitas vezes foi o medo quem me tomou pela mão e me levou. O medo me leva ao perigo. E tudo o que amo é arriscado. – Em Brasília estão as crateras da Lua. – A beleza de Brasília são as suas estátuas invisíveis.